Uma justificativa para o silêncio
Eu lembro que ele chegou de viagem com uma caixa grande e vazada, entre os braços e um olhar de quem quer surpreender. Pondo-a no jardim e exigindo nossa presença,minha e da minha irmã. Mas não precisava mais que um grito,mais que um sorriso,colávamos nele sempre que ele chegava,como que pra não deixar que ele fosse embora novamente,sem se despedir,numa madrugada sem estrelas. Afinal era o nosso pai,porra,e como se não bastasse era apaixonado por astrofísica.Tínhamos pouca idade,mas idade suficiente para amar,e comparar esse amor com algum elemento da natureza,como o mar por exemplo(coisa que alguém poderia ter ensinado mais não ensinou).Isso ele adivinhou ( ou as estrelas lhe disseram?): na caixa haviam dois coelhos de verdade! Um pra cada uma para não haver briga,ele ciente da nossa falta de espaço no mundo.Um branco e outro preto.Ansiosos pelas flores do jardim cuja destruição era iminente,e pelas cenouras cruas dadas de bom grado,na mão estendida querendo um beijo e um abraço impossíveis. Eu escolhi o branco,que me lembrava uma nuvem macia. Mas durou pouco nossa relação de amizade,crepúsculos e alvoradas: foi atropelado por um caminhão de lixo em frente de casa. Que eu lembre,cheguei a ver o bicho esbugalhado,distorcido,morto na sua inocência branca e na minha inocência de criança crescendo,a ponto de compreender sozinha que a morte também leva um pedaço da alma de quem ama. O da minha irmã,o pretinho meigo e misterioso,um homem quis comer e o colocou na bolsa no momento que ele deu uma fugida suada pela tela apertada de proteção:morreu em nome da liberdade.Mortes trágicas e cômicas para duas meninas de maria chiquinha que dormiam antes das oito,mas sonhavam acordadas até ás dez.Até hoje parece um sonho,parecem inventados .Mas junto deles,engraçado, me vem uma sensação muito real de uma barata lilás e laranja,linda,que visitava de vez em quando nosso quintal-jardim,é que um dia ela subiu na minha perna e eu dei um coice na coitada porque morri de susto das malditas cócegas que ela fazia.Foi um amor tão cego,que nem consigo lembrar o nome que dei àquela brancura perfeita que roia os sapatos da mamãe e de sobremesa o fio do telefone. Eram dois!..inacreditável. Ficavam correndo pelo beco onde havia o varal com roupas e o eco repetitivo da sandália havaiana da empregada grávida que me gritava,a varrer o chão e resmungar o calor escaldante. A casa parecia uma espaçonave estacionada,sem hora marcada para voltar ao nosso mundo. E quando os coelhos foram embora,e a morte deles não me traumatizou eu comecei a odiar cachorros,que por ventura apareciam em casa,e nem de longe lembravam a poesia de um coelho.Pois eu queria o luxo de possuir um animal tão elegante quanto os seres humanos.
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